Èsù na África
Exu é um orixá ou um ebora de múltiplos e contraditórios aspectos, o que torna difícil defini-lo de maneira coerente. De caráter irascível, ele gosta de suscitar dissensões e disputas, de provocar acidentes e calamidades públicas e privadas. É astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente, a tal ponto que os primeiros missionários, assustados com essas características, compram-no ao diabo, dele fazendo o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção, ódio, em oposição à bondade, à pureza, à elevação e ao amor de Deus.
Entretanto, exu possui o seu lado bom e, se ele é tratado com consideração, reage favoravelmente, mostrando-se serviçal e prestativo. Se, pelo contrário, as pessoas se esquecerem de lhe oferecerem sacrifícios e oferendas, podem esperar todas as catástrofes Exu revela-se, talvez, dessa maneira o mais humano dos orixás, nem completamente mau, nem completamente bom.
Ele tem as qualidades dos seus defeitos, pois é dinâmico e jovial, constituindo-se, assim, um orixá protetor, havendo mesmo pessoas na África que usam orgulhosamente nomes como Èsùbíyìí (concebido por Exu), ou (Exu merece ser adorado).
Como personagem histórica, Exu teria sido um dos companheiros de Odùduà, quando da sua chegada a Ifé, e chamava-se Èsù Obasin. Tornou-se, mais tarde, um dos assistentes de Orunmilá, que preside a adivinhação pelo sistema de Ifá. Segundo Epega, Exu tornou-se rei Kêto sob o nome de Èsù Alákétu.
É Exu que supervisiona as atividades do mercado do rei em cada cidade: o de Oyó é chamado Èsù Akesan.
Como orixá, diz-se que ele veio ao mundo com um porrete, chamado ogò, que teria a propriedade de transporta-lo, em algumas horas, a centenas de quilômetros e de atrair, por um poder magnético, objetos situados a distâncias igualmente grandes.
Exu é o guardião dos templos, das casas, das cidades e das pessoas. É também ele que serve de intermediário entre os homens e os deuses. Por essa razão é que nada se faz sem ele e sem que oferendas lhe sejam feitas, antes e qualquer outro orixá, para neutralizar suas tendências a provocar mal-entendidos entre os seres humanos e em suas relações com os deuses e, até mesmo, dos deuses entre si.
Exu teve numerosas brigas com os outros orixás, nem sempre saindo vencedor. Certas lendas nos contam seus sucessos e seus reveses nas suas relações com Oxalá, ao qual fez passar alguns maus momentos, em vingança por não haver recebido certas oferendas, quando Oxalá foi enviado por Olodumaré, o deus supremo, para criar o mundo. Exu provocou-lhe uma sede tão intensa que Oxalá bebeu vinho de palma em excesso, com conseqüências desastrosas, como veremos. Teremos oportunidade, também, de ver como exu foi responsável pelos transtornos de que o mesmo Oxalá foi objeto quando certa vez foi visitar Xangô.
Por outro lado, em lendas publicadas numa outra obra, narra-se que houve uma disputa entre Exu e o Grande Orixá, para saber qual dos dois era o mais antigo e, em conseqüência, o mais respeitável. Oxalá provou sua superioridade durante um combate cheio de peripécias, ao fim do qual ele apoderou-se da cabacinha que encerra o poder de Exu e Obaluaê, foi este último que saiu igualmente vencedor.
O lado malfazejo de Exu é evidenciado nas seguintes histórias:
Uma delas, bastante conhecida e da qual existem numerosas variações, conta como ele semeou discórdia entre dois amigos que estavam trabalhando em campos vizinhos. Ele colocou um boné vermelho e um lado e branco do outro e passou ao longo de um caminho que separava os dois campos. Ao fim de alguns instantes, um dos amigos fez alusão a um homem de boné vermelho; o outro retrucou que o boné era branco e o primeiro voltou a insistir, mantendo a sua afirmação; o segundo permaneceu firme na retificação. Como ambos eram de boa fé, apegavam-se a seus pontos de vista, sustentando-os com ardor e, logo depois, com cólera. Acabaram lutando corpo a corpo e mataram-se um ao outro.
Uma outra lenda mostra Exu mais maquiavélico ainda. Ele foi procurar uma rainha abandonada já há algum tempo por seu marido e lhe disse: "Traga-me alguns fios da barba do rei e corte-os com esta faca. Eu lhe farei um amuleto que lhe trará de volta o seu marido". Em seguida, Exu foi à casa do filho da rainha, que era o príncipe herdeiro.Este vivia numa residência situada fora dos limites do palácio do rei. O costume assim o determinava, a fim de prevenir toda tentativa de assassinato de um soberano por um príncipe impaciente por subir ao trono. "O rei vai partir para guerra", disse-lhe ele, e pede o seu comparecimento esta noite ao palácio, acompanhada de seus guerreiros. Finalmente, Exu foi ao rei e disse-lhe: A rainha, magoada pela sua frieza, deseja mata-lo para se vingar. Cuidado, esta noite. E a noite veio. O rei deitou-se, fingiu dormir e viu, logo depois, a rainha aproximar um afaça de sua garganta. O que ela queria era cortar um fio da barba do rei, mas ele julgou que ela desejava assassiná-lo. O rei desarmou-a e ambos lutaram, fazendo grande algazarra. O príncipe, que chegava ao palácio com seus guerreiros, escutou grito nos aposentos do rei e correu para lá. Vendo o rei com a uma faca na mão, o príncipe pensou que ele queria matar sua mãe. Por seu lado, o rei, ao ver o filho penetrar nos seus aposentos, no meio da noite, armado e seguido por seus guerreiros, acreditou que eles desejavam assassina-lo. Gritou por socorro. A sua guarda acudiu e houve então uma grande luta, seguida de massacre generalizado.
Uma história mais simples mostra a atividade de Exu na vida cotidiana: uma mulher se encontra no mercado vendendo os seus produtos. Exu põe fogo na sua casa, ela corre para lá, abandonando seu negócio. A mulher chega tarde, a casa está queimada e, durante esse tempo, um ladrão levou as suas mercadorias.
Nada disso teria acontecido – nem os amigos teriam brigado, nem o rei e o príncipe teriam se massacrado, nem a vendedora teria se arruinado – se tivessem feito a Exu as oferendas e os sacrifícios usuais.
O lugar consagrado a Exu entre os iorubás é constituído de um pedaço de pedra porosa, chamada Yangi, ou por um montículo de terra grosseiramente modelado na forma humana, com olhos, nariz e boca assinalados com búzios, ou então ele é representado por uma estátua, enfeitada com fieiras de búzios, tendo em suas mãos pequenas cabaças (àdó), contendo os pós por ele utilizados em seus trabalhos. Seus cabelos são presos numa longa trança, que cai para trás e forma, em cima, uma crista para esconder a lâmina de faca que lê tem no alto do crânio. Isso, por sinal, é dito em uma de suas saudações:
Sinso abè kò lóri erù
A lâmina (sobre a cabeça) é afiada, ele não tem (pois) cabeça para carregar fardos".
A Exu são oferecidos bodes e galos, pretos de preferência, e prato cozidos em azeite-de-dendê (epo), porém nunca se lhe deve oferecer o óleo branco (adi), que é extraído das amêndoas contidas nos caroços do dendê. Este àdí tem a reputação de ser "cheio de violência e de cólera". Dizem que uma boa maneira de se vingar de um inimigo consiste em derramar sobre a estátua de Exu esse óleo, fervendo de preferência, declarando em voz alta que essa oferenda é feita pela pessoa desprezada. Exu não deixaria então de lhe pregar uma peça!
Os elégùn de Exu participam das cerimônias celebradas para os outros orixás.Alguns acompanham Xangô e traz nas costas uma tralha curiosa, onde se encontram, em desordem, duas ou três estatuetas de Exu, fieiras de búzios, pentes, espelhos e as indispensáveis cabacinhas àdó, contendo os elementos de seu poder. Outros, chamados olúpòna, participam das cerimônias que se realizam a cada quatro dias, para Ogum, na região de Holi. No decorrer de suas danças, trazem sempre na mão um ògo, bastão de forma fálica.
Exu pode fazer coisas extraordinárias que se exprime nos seus oríkí, os louvores tradicionais:
"Exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro".
"É numa peneira que ele transporta o azeite que compra no mercado; e o azeite não escorre dessa estranha vasilha".
"Ele matou um pássaro ontem, com uma pedra que somente hoje atirou. Se ele se zanga, pisa nessa pedra e ela põe-se a sangrar".
"Aborrecido, ele senta-se na pele de uma formiga".
"Sentado, sua cabeça bate no teto; de pé, não atinge nem mesmo a altura do fogareiro.
Légba
Entre os fon do ex-Daomé, Èsù-Elégbára tem o nome de Légba. Ele é representado por um montículo de terra em forma de homem acocorado, ornado com um falo de tamanho respeitável. Esse detalhe deu motivo a observações escandalizadas, ou divertidas, de numerosos viajantes antigos e fizeram-no passar, erradamente, pelo deus da fornicação. Esse falo ereto nada mais é do que a afirmação de seu caráter truculento, atrevido e sem-vergonha e de seu desejo de chocar o decoro.
Os Légba, guardiões dos templos de Hevioso, vodun do trovão, e de sapata, vodun equivalente a Sànpònná dos iorubás, manifestam-se através de légbasi, equivalentes a Olúpòna, durante as cerimônias celebradas para esse vodun. Os légbasi vestem-se com uma saia de ráfia tinturada de roxo e usam a tiracolo inúmeros colares de búzios. Debaixo da sua saia traz, disfarçado, um volumoso falo de madeira que levantam, de vez em quando, com mímicas eróticas. Além disso, têm na mão uma espécie de espanta-moscas, Roxo, semelhante a um espanador, no qual está escondido um bastão em forma de falo, que eles agitam, de maneira engraçada, na cara das pessoas presentes, particularmente sob o nariz dos turistas, pois os légbasi não deixam de observar seus sentimentos ambivalente diante dessas exibições.
Exu no Novo Mundo
No Brasil, como em Cuba, Exu foi sincretizado com o Diabo. Não inspira, porém, grande terror, pois sabe-se que, quando tratado convenientemente, ele trabalha para o bem, quer dizer, pode ser enviado para fazer mal às pessoas más ou àquelas que nos prejudicam ou, ainda, àquelas que nos causam ressentimentos.
Chamam-no, familiarmente, o "Compadre" ou o "Homem das Encruzilhadas", pois é nesses lugares que se depositam, de preferência, as oferendas que lhe são destinadas.
Poucas pessoas lhe são abertamente consagradas em razão desse suposto sincretismo com o Diabo. A tendência, logo que ele se manifesta, é de acalma-lo, de fixa-lo, oferecendo-lhe sacrifícios e procedendo à iniciação da pessoa interessada em proveito de seu irmão Ogum, com o qual Exu divide um caráter violento e arrebatado.
O lugar consagrado a Exu é, geralmente, ao ar livre ou no interior de uma pequena choupana isolada ou, ainda, atrás da porta da casa. É simbolizado por um tridente de ferro, plantado sobre um montículo de terra e, algumas vezes, por uma imagem, igualmente de ferro, representando o Diabo Brandindo o tridente.
A segunda-feira é o dia da semana consagrado a ele. As pessoas que procuram a sua proteção usam colares de contas pretas e vermelhas. As oferendas, de animais e comida, como na áfrica, são-lhe apresentadas antes das dos outros orixás.
Diz-se na Bahia que existem vinte e um Exus, segundo uns, e apenas sete, segundo outros. Alguns dos seus nomes podem passar por apelidos, outros parecem ser letras dos cânticos ou fórmulas de louvores. Eis alguns: Exu-Elegbá ou Exu-Elegbará e seus possíveis derivados: Exu-Bará ou Exu- Ibará, Exu-Alaketo, Exu-Laalu, Exu-Jeto, Exu-Akessan, Exu-Loná, Exu-Agbô, Exu-Larôye, Exu- Inan, Exu-Odora, Exu-Tiriri.
Assinalamos anteriormente que, antes de realizar o xirê dos orixás, faz-se, na Bahia, o padê, palavra que, como vimos, significa em iorubá encontro ou reunião, durante a qual Exu é chamado, saudado, cumprimentado e enviado ao além com uma dupla intenção: convocar os outros deuses para a festa e, ao mesmo tempo, afasta-lo para que não perturbe a boa ordem da cerimônia com um dos seus golpes de mau gosto.
Arquétipo
O arquétipo de Exu é muito comum em nossa sociedade, onde proliferam pessoas com caráter ambivalente, ao mesmo tempo boas e más, porém com inclinação para a maldade, o desatino, a obscenidade, a depravação e a corrupção. Pessoas que têm a arte de inspirar confiança e dela abusar, mas que apresentam, em contrapartida, a faculdade de inteligente compreensão dos problemas dos outros e a de dar ponderados conselhos, com tanto mais zelo quanto maior a recompensa esperada. As cogitações intelectuais enganadoras e as intrigas políticas lhes convêm particularmente e são, para elas, garantias de sucesso na vida.
Esse texto foi retirado do livro "Orixás" de Pierre Fatumbi
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